A palavra "liberdade", que por essência deveria ser inquestionável, tem sido paradoxalmente utilizada para justificar inúmeras formas de exploração. Impulsionada pela mídia conservadora, pela blogosfera associada, por think tanks e governos, ela se tornou um álibi para ataques aos menos privilegiados, para a perpetuação da desigualdade e para a intrusão de uma pequena parcela da população (o "1%") na vida da maioria. Como o libertarianismo, que em sua origem representava um impulso nobre, se transformou em sinônimo de injustiça?
Liberdade à Custa dos Vulneráveis:
Em nome dessa liberdade – especificamente, a liberdade de desregulação – os bancos foram autorizados a colapsar a economia. Sob o mesmo pretexto, impostos para os super-ricos são cortados. Em nome da liberdade, corporações, através de seus lobbies, conseguem achatar o salário mínimo e estender as horas de trabalho. Nos EUA, o lobby das seguradoras pressiona o congresso para impedir um sistema de saúde pública eficaz e influencia até as leis de planejamento ambiental. Esta é a liberdade dos poderosos para explorar os fracos, a liberdade dos ricos para explorar os pobres.
O libertarianismo de direita, em sua interpretação, reconhece pouquíssimas restrições legítimas ao poder de agir, independentemente do impacto na vida alheia. Seu conceito de liberdade parece ser, em sua essência, uma mera justificativa para a ganância.
O Desafio ao Conceito Distorcido de Liberdade:
Por que, então, demoramos tanto a questionar essa concepção de liberdade? Uma das razões reside na forma como o grande conflito político de nossa era foi descaracterizado. O embate entre neoliberais e milionários (apoiados por empresas) de um lado, e defensores da justiça social e ambientalistas de outro, tem sido erroneamente interpretado como um confronto entre liberdades negativas e positivas.
Isaiah Berlin, em seu ensaio de 1958, "Dois Conceitos de Liberdade", esclareceu essas definições. De forma simplificada e grosseira:
Liberdade Negativa: A liberdade de ser ou agir sem interferência externa.
Liberdade Positiva: A liberdade de inibição, o poder de transcender limitações sociais ou psicológicas. Berlin demonstrou como a liberdade positiva foi abusada por tiranias, notadamente pela União Soviética, que a retratava como o empoderamento do povo através da subordinação a uma vontade coletiva.
Libertários de direita frequentemente acusam defensores da justiça social e ambientalistas de serem comunistas disfarçados, buscando ressuscitar concepções soviéticas de liberdade positiva. No entanto, a realidade é que a batalha se concentra predominantemente em um confronto de liberdades negativas.
O Conflito de Liberdades e a Necessidade de Restrição:
Como Berlin observou, "Nenhuma atividade do homem é tão completamente privada que não obstrua a vida de outros de alguma forma". Ele argumentou que a liberdade de alguns, por vezes, precisa ser reduzida "para assegurar a liberdade dos outros". Em outras palavras, a sua liberdade termina onde a minha começa. É este o conceito defendido pelos Verdes e pelos promotores da justiça social.
Berlin também evidenciou que a liberdade pode entrar em conflito com outros valores, como justiça, igualdade ou felicidade humana. "Se a minha liberdade ou a da minha classe ou nação depende da miséria de uma série de outros seres humanos, o sistema que promove isso é injusto e imoral". Consequentemente, o Estado deve impor restrições legais às liberdades que interferem com as liberdades alheias, ou que conflitam com a justiça e a humanidade.
Um exemplo notável desses conflitos de liberdade negativa é retratado em "The Fallen Elm", um poema do século XIX de John Clare, que pode ser considerado um documento fundador do ambientalismo britânico. Clare descreve o corte de uma árvore amada pelo seu senhorio, que exercia sua liberdade de cortar a árvore. Ao fazê-lo, ele invadia a liberdade de Clare, que via na árvore um reforço à sua própria vida. O senhorio justificava a destruição caracterizando a árvore como um impedimento à liberdade – uma liberdade que ele equivocadamente associava à liberdade geral da humanidade. Sem a intervenção estatal (que hoje poderia ser uma ordem de preservação), o poderoso pode esmagar os prazeres do impotente.
Contudo, libertários de direita ignoram este conflito. Eles falam, assim como o senhorio de Clare, como se a liberdade afetasse a todos da mesma forma. Reivindicam a liberdade de poluir, de explorar, e, no caso de alguns defensores do porte de armas, até de matar, como se fossem direitos humanos fundamentais. Caracterizam qualquer tentativa de contê-los como tirania, recusando-se a reconhecer que existe um conflito entre liberdades.
Um Exemplo Prático:
Para ilustrar de forma concreta: você aceitaria que as liberdades de algumas pessoas interfiram nas liberdades de outras? Na Romênia, existe uma fundição de chumbo cuja liberdade de poluir encurta a vida de seus vizinhos. Certamente, essa fábrica deveria ser regulamentada para aumentar as liberdades negativas – a ausência de poluição, a liberdade de não ser envenenado – de seus vizinhos.
A Verdadeira Face do Libertarianismo Moderno:
O libertarianismo moderno é, na verdade, um disfarce adotado por aqueles que desejam explorar sem restrições. Ele finge que apenas o Estado interfere em nossas liberdades, ignorando o papel dos bancos, corporações e dos ricos em nos tornar menos livres. Nega a necessidade do Estado para contê-los e proteger as liberdades dos mais vulneráveis. Essa filosofia míope é um truque, cujos promotores buscam desviar a justiça, jogando-a contra a própria ideia de liberdade. O resultado é que eles transformaram a "liberdade" em um instrumento de opressão.
Marcelo Biolchini dos Santos
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